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Biogás na indústria canavieira

A produção e uso do biogás foi documentada pela primeira vez no Reino Unido em 1895 (Metcalf & Eddy 1979). Quase cem anos depois, no final dos anos 1980, tivemos as primeiras experiências de produção em larga escala de biogás a partir de vinhaça na indústria canavieira, na Usina São Martinho e na antiga Destilaria São João (atualmente Abengoa Bioenergia São João). Na São Martinho, o biogás produzido é aproveitado como insumo energético para secagem de levedura. Na São João, o biogás foi destinado para uso veicular, porém o sistema foi desativado em meados dos anos 90.

O biogás, antes visto como um subproduto do tratamento de resíduos orgânicos por digestão anaeróbia, se transformou em uma fonte de energia renovável com benefícios cada vez mais relevantes, num ambiente em que se busca a sustentabilidade ambiental. Neste ambiente, o biogás volta à cena com força na indústria canavieira nos últimos anos, trazendo de volta projetos de porte, como por exemplo, na inauguração em outubro de 2020 da central de geração de eletricidade da Usina Bonfim da Raízen, com capacidade instalada de 21 MW, a partir do biogás de vinhaça, torta de filtro e bagaço.

Estes três resíduos – a vinhaça, a torta de filtro e o bagaço – carregam ainda consigo uma considerável quantidade de matéria orgânica, resultado das perdas industriais no processamento da cana. As perdas de sacarose no bagaço compõem seu conteúdo energético, e são utilizadas nas caldeiras para o ciclo de cogeração de energia. A vinhaça e a torta de filtro levam este residual de açúcares não convertidos e/ou perdidos no processo produtivo de fabricação de açúcar e etanol para a lavoura. Ocorre que, toda esta matéria orgânica residual pode ser submetida ao processo de biodigestão anaeróbia e produzir o biogás, combustível renovável, evitando também as emissões de metano para a atmosfera. Desta forma, a produção de biogás a partir dos resíduos da indústria canavieira, atinge dois objetivos na sustentabilidade: geração de energia renovável e redução de emissões dos gases do efeito estufa.

Com a biodigestão da vinhaça e da torta de filtro, temos um potencial de produção na faixa de 9,3 Nm³ de biogás por tonelada de cana processada. Isto representa uma recuperação de aproximadamente 200 MJ / t cana ou a geração de 4 kg de metano / t cana. Numa usina de cana, considerando apenas o bagaço de cana como insumo energético, este potencial de biogás representa aproximadamente 10% de bagaço adicional como oferta de energia primária na usina. Para o Brasil, este potencial de biogás representaria um poço de gás natural fornecendo algo em torno de 10 milhões de m³/dia, ou aproximadamente 3 milhões de tep (tonelada equivalente de petróleo) por ano de energia renovável, considerando toda cana processada no país em 2019.

As possibilidades de utilização do biogás gerado na indústria canavieira são diversas, e extrapolam o ambiente industrial. Na área industrial de processamento de cana, o biogás pode ter os seguintes usos energéticos:

  • Aumentar a oferta de energia, permitindo a inclusão de novos processos ou plantas anexas.
  • Aumentar a produção de eletricidade nos sistemas de cogeração existentes, complementando o uso do bagaço de cana.
  • Substituir parcialmente o bagaço de cana eventualmente utilizado para outros fins não energéticos.
  • Melhorar a eficiência dos sistemas de cogeração existentes, com ciclos híbridos, combinando seu uso eventualmente com gás natural.
  • Geração de energia elétrica direta através da queima por motores a combustão, incluindo ou não a cogeração de energia.
  • Uso na secagem de produtos (bagaço, levedura, melaço, etc.) ou sendo substituto em processos nos quais se utiliza vapor de alta pressão/temperatura.
  • Ser utilizado como fonte de frio para melhorar a eficiência de processos industriais, p.ex. fermentação, ou mesmo para sistemas HVAC.

 

Fora do ambiente industrial, o biogás pode ser convertido em biometano, que pode ser comercializado junto à concessionária de gás natural local, ou utilizado na frota canavieira em substituição ao óleo diesel. O processo de produção de biometano também pode ser fonte de gás carbônico comercial.

O biogás também pode ser utilizado como insumo para produção de moléculas (matéria-prima) usando seu componente principal, o metano – CH4. Os produtos derivados mais conhecidos são o hidrogênio – H2 – e o monóxido de carbono – CO (Syngas), que são precursores para produção de alcanos (reação de Fischer-Tropsch), metanol ou reações de hidrogenação, hidroformilação (oxo síntese), processos relacionados à amônia, entre outros. O uso do biogás é mais uma oportunidade área da Sucroquímica, na qual a sacarose já é um precursor de produtos renováveis, p.ex., os bioplásticos.

E as possibilidades e oportunidades não se esgotam nos pontos citados acima. Poderíamos citar também as células de combustível e os sistemas de gaseificação integrados de biomassa, entre outros.

Para avaliar todo esse potencial de geração de biogás e todas as suas oportunidades de uso é necessário integrar os conhecimentos e as tecnologias disponíveis nas áreas de geração de biogás, no seu refino – dessulfurização, descarbonização – e utilização energética ou não, combinando isto com as características específicas da unidade industrial, sua modalidade de operação e perfil de produção. Os requisitos da área agrícola para aplicação de vinhaça e torta de filtro, as características da vinhaça e sua eventual concentração também devem ser consideradas. Até a queima de vinhaça como energético é um fator a ser levado em conta.

Cada usina de cana vai ter uma solução específica e diferenciada nos projetos de geração e uso de biogás, em função da sua localização, do seu plano de negócios, de seus objetivos e metas econômicos e ambientais. Todo esse potencial de geração de energia renovável demanda muito trabalho. E nossa contribuição neste trabalho é apresentar as melhores soluções para a sua usina, o seu negócio, com serviços de engenharia e consultoria independente.

Sobre o Autor: Sérgio Luiz Ferreira

Engenheiro Químico – Especialista em Cogeração de Energia

Engenheiro químico (Unicamp/1994), MBA em Energia (USP/2005), atua no mercado agroindustrial, especialmente nos segmentos de processamento de milho e cana-de-açúcar em projetos de engenharia nas áreas de utilidades, meio ambiente, geração e uso de energia, em todas as fases – conceitual, básico e executivo. Especialista em cogeração de energia com gás natural, biogás e biomassa.

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